Cover of Carta a D.

Carta a D.

André Gorz

5/5 estrelas
Revisado por J.
5 de Julho, 2025

Para A. :)

Quid?

Neste livro, André Gorz (que nasceu em Viena 😉) partilha a história da sua vida ao lado de D. - a sua mulher - com quem viveu até ao fim. Fala do encontro deles, dos empregos que tiveram como jornalistas, da escrita dos seus ensaios, do luto pela própria identificação de si mesmo, e da evolução constante da personalidade dos dois.

O Início

Esta foi se calhar, a parte mais previsível do livro. Um relato honesto, no qual André explica porque é que se apaixonou por D. e o que ele admirava nela – mais na personalidade do que na aparência.

Distinguias logo de início o essencial do acessório. Perante um problema complexo, parecia-te sempre evidente a decisão a tomar. Tinhas uma confiança inabalável na justeza dos teus juízos. Onde é que ias buscar essa segurança? [...] Admirei-te o sangue frio e o à vontade.

Ele vai repetir esse fato muitas vezes ao longo do livro. As partes seguintes são muito específicas da vida deles e afastam-se daquele típico livro de amor “meloso”, que no fim das contas não traz um verdadeiro valor. Aqui acompanhamos a vida dele como um livro aberto (não sei se essa expressão existe em português, mas usamos muito em francês 😄).

Jornalistas, Viajantes, Intelectuais

Eis alguns pontos que me surpreenderam:

  • O círculo social em que André e D. estavam inseridos: eles conheciam Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir (😳) - figuras centrais da cena intelectual francesa da época;
  • Complicidade no trabalho: passaram boa parte da vida trabalhando juntos. Embora isso nem sempre funcione bem para casais, no caso deles dava certo - eles se completavam. Chegou a um ponto em que ele já não conseguia trabalhar sem ela;
  • As viagens que fizeram: EUA, México, Áustria, França, Suíça.. viajar não era tão comum naquela época e as relações que construíram ao longo do tempo;

O Traidor

Uma parte do livro descreve O Traidor, a primeira obra de André Gorz. Neste livro (semi-autobiográfica) ele expõe o seu próprio conflito interno - revelando-se em busca de uma identidade que não o traia: nem a si mesmo, nem à sua classe social.

Que escolher entre pertencimento e autenticidade? Ele questiona se é possível permanecer fiel às próprias convicções enquanto se ascende socialmente - ou se toda tentativa de integração implica, de alguma forma, em traição.

Um ponto chave desta parte - e do livro - é o seu arrependimento de não ter falado mais dela nos seus escritos e ensaios, a atividade que marcou a maior parte da vida dele. O seu envolvimento na política e na sociologia acabou por se sobrepor a isso.

Questões sobre o fim da vida a dois

As últimas páginas do livro focam-se no fim da vida - com uma luta entre a doença e o desejo de passar mais tempo juntos.

Perguntei-me o seguinte: será que ela leu este livro? Como ela ainda estava viva (ainda que doente), é provável que tenha lido este livro antes de morrer.

Deste-me a tua vida, deste-me tudo de ti; gostava de poder dar-te tudo de mim durante o tempo que nos resta.

Só neste momento é que ficamos a saber o nome por detrás da letra D. Isso acrescenta uma dose de emoção à leitura, já que ele se refere sempre a "Tu" ou a "D.". Algumas perguntas que me passaram pela cabeça:

  • O que significa amar alguém por uma vida inteira?
  • Como o amor pode mudar e crescer com o tempo, em vez de simplesmente acabar?
  • Envelhecer junto é sorte... ou um desafio?

O Fim

Cada um de nós gostaria de não sobreviver à morte do outro. Muitas vezes dissemos um ao outro que, no caso impossível de termos uma segunda vida, quereríamos passá-la juntos.

O livro foi escrito de 21 de março a 6 de junho de 2006.

No dia 22 de Setembro de 2007, André Gorz (n. 1923) e sua mulher, Dorine (n. 1925), cometeram suicídio, juntos na sua casa em Vosnon (Aube, região de Champagne-Ardenne). Foram encontrados dois dias depois, deitados lado a lado.

Citações Marcantes

"Vais fazer oitenta e dois anos. Encolheste seis centímetros em altura, pesas apenas quarenta e cinco quilos e manténs-te bela, graciosa e desejável. Há cinquenta e oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca. Sinto de novo no fundo do peito um vazio devorador que é apenas preenchido com o calor do teu corpo contra o meu."

- Página 5

"Sinto necessidade de reconstituir a história do nosso amor para lhe apreender todo o sentido. Foi ela que nos permitiu tornarmo-nos quem somos, um pelo outro e um para o outro. Escrevo-te para compreender o que vivi, o que vivemos juntos. A nossa história começou maravilhosamente, quase como um relâmpago."

- Página 7

"Eu não compreendia. Não sabia que laços invisíveis se teciam entre nós."

- Página 10

"O que me cativava em ti é o que tu me fazias aceder a um outro mundo. Os valores que tinham dominado a minha infância não tinham curso nele. Esse mundo encantava-me. Podia evadir-me ao entrar nele, sem obrigações nem pertença. Quando estava contigo, estava noutra parte, num lugar estrangeiro, estrangeiro a mim mesmo."

- Página 12