
André Gorz
Para A. :)
Neste livro, André Gorz (que nasceu em Viena 😉) partilha a história da sua vida ao lado de D. - a sua mulher - com quem viveu até ao fim. Fala do encontro deles, dos empregos que tiveram como jornalistas, da escrita dos seus ensaios, do luto pela própria identificação de si mesmo, e da evolução constante da personalidade dos dois.
Esta foi se calhar, a parte mais previsível do livro. Um relato honesto, no qual André explica porque é que se apaixonou por D. e o que ele admirava nela – mais na personalidade do que na aparência.
Distinguias logo de início o essencial do acessório. Perante um problema complexo, parecia-te sempre evidente a decisão a tomar. Tinhas uma confiança inabalável na justeza dos teus juízos. Onde é que ias buscar essa segurança? [...] Admirei-te o sangue frio e o à vontade.
Ele vai repetir esse fato muitas vezes ao longo do livro. As partes seguintes são muito específicas da vida deles e afastam-se daquele típico livro de amor “meloso”, que no fim das contas não traz um verdadeiro valor. Aqui acompanhamos a vida dele como um livro aberto (não sei se essa expressão existe em português, mas usamos muito em francês 😄).
Eis alguns pontos que me surpreenderam:
Uma parte do livro descreve O Traidor, a primeira obra de André Gorz. Neste livro (semi-autobiográfica) ele expõe o seu próprio conflito interno - revelando-se em busca de uma identidade que não o traia: nem a si mesmo, nem à sua classe social.
Que escolher entre pertencimento e autenticidade? Ele questiona se é possível permanecer fiel às próprias convicções enquanto se ascende socialmente - ou se toda tentativa de integração implica, de alguma forma, em traição.
Um ponto chave desta parte - e do livro - é o seu arrependimento de não ter falado mais dela nos seus escritos e ensaios, a atividade que marcou a maior parte da vida dele. O seu envolvimento na política e na sociologia acabou por se sobrepor a isso.
As últimas páginas do livro focam-se no fim da vida - com uma luta entre a doença e o desejo de passar mais tempo juntos.
Perguntei-me o seguinte: será que ela leu este livro? Como ela ainda estava viva (ainda que doente), é provável que tenha lido este livro antes de morrer.
Deste-me a tua vida, deste-me tudo de ti; gostava de poder dar-te tudo de mim durante o tempo que nos resta.
Só neste momento é que ficamos a saber o nome por detrás da letra D. Isso acrescenta uma dose de emoção à leitura, já que ele se refere sempre a "Tu" ou a "D.". Algumas perguntas que me passaram pela cabeça:
Cada um de nós gostaria de não sobreviver à morte do outro. Muitas vezes dissemos um ao outro que, no caso impossível de termos uma segunda vida, quereríamos passá-la juntos.
O livro foi escrito de 21 de março a 6 de junho de 2006.
No dia 22 de Setembro de 2007, André Gorz (n. 1923) e sua mulher, Dorine (n. 1925), cometeram suicídio, juntos na sua casa em Vosnon (Aube, região de Champagne-Ardenne). Foram encontrados dois dias depois, deitados lado a lado.
"Vais fazer oitenta e dois anos. Encolheste seis centímetros em altura, pesas apenas quarenta e cinco quilos e manténs-te bela, graciosa e desejável. Há cinquenta e oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca. Sinto de novo no fundo do peito um vazio devorador que é apenas preenchido com o calor do teu corpo contra o meu."
- Página 5
"Sinto necessidade de reconstituir a história do nosso amor para lhe apreender todo o sentido. Foi ela que nos permitiu tornarmo-nos quem somos, um pelo outro e um para o outro. Escrevo-te para compreender o que vivi, o que vivemos juntos. A nossa história começou maravilhosamente, quase como um relâmpago."
- Página 7
"Eu não compreendia. Não sabia que laços invisíveis se teciam entre nós."
- Página 10
"O que me cativava em ti é o que tu me fazias aceder a um outro mundo. Os valores que tinham dominado a minha infância não tinham curso nele. Esse mundo encantava-me. Podia evadir-me ao entrar nele, sem obrigações nem pertença. Quando estava contigo, estava noutra parte, num lugar estrangeiro, estrangeiro a mim mesmo."
- Página 12